Marialis Cultus - I PARTE - Santo Rosário

Ir para o conteúdo

Marialis Cultus - I PARTE

Documentos > Marialis Cultus

EXORTAÇÃO APOSTÓLICA
MARIALIS CULTUS
DO SANTO PADRE
PAULO VI
PARA A RETA ORDENAÇÃO
E DESENVOLVIMENTO DO CULTO
À BEM-AVENTURADA VIRGEM MARIA



I PARTE
O CULTO DA VIRGEM SANTÍSSIMA NA LITURGIA

1. Ao dispor-nos a tratar do lugar que a bem-aventurada Virgem Maria ocupa no culto cristão, devemos, em primeiro lugar, volver a nossa atenção para a sagrada Liturgia; esta, efetivamente, para além de um rico conteúdo doutrinal, possui uma incomparável eficácia pastoral e tem um bem reconhecido valor exemplar para as outras formas de culto. Assim, quereríamos aqui, se isso nos fosse possível, considerar as várias Liturgias do Oriente e do Ocidente; mas, em ordem à finalidade do presente documento, limitar-nos-emos a examinar quase exclusivamente os livros do Rito Romano; aliás, somente este foi objeto, em seguimento das normas práticas emanadas no Concílio Vaticano II (SC 3), de uma renovação profunda, também pelo que respeita às expressões de veneração para com Maria; e exige, portanto, ser atentamente considerado e apreciado.


A. A Virgem Santíssima na Liturgia romana restaurada

2. A reforma da Liturgia romana pressupunha uma acurada restauração do Calendário Geral. Este, organizado de molde a dispor em determinados dias, com o devido relevo, a celebração da obra de Salvação, distribuindo ao longo do ano todo o mistério de Cristo, desde a Encarnação até à expectativa da sua nova vinda gloriosa (SC 102), permitiu que nele fosse inserida, de maneira mais orgânica e com uma ligação mais íntima, a memória da Mãe, no ciclo anual dos mistérios do Filho.

3. Assim, no tempo do Advento a Liturgia, não apenas na altura da solenidade de 8 de dezembro, celebração, a um tempo, da Imaculada Conceição de Maria, da preparação radical (cf. Is 11,1.10) para a vinda do Salvador e para o feliz exórdio da Igreja sem mancha e sem ruga, (4) recorda com freqüência a bem-aventurada Virgem Maria, sobretudo nas férias que vão de 17 a 24 de dezembro; e, mais particularmente, no domingo que precede o Natal, quando faz ecoar antigas palavras proféticas acerca da Virgem Mãe e acerca do Messias (5) e lê episódios evangélicos relativos ao iminente nascimento de Cristo e do seu Precursor.(6)

4. Desta maneira, os fiéis que procuram viver com a Liturgia o espírito do Advento, ao considerarem o amor inefável com que a Virgem Mãe esperou o Filho,(7) serão levados a tomá-la como modelo e a prepararem-se, também eles, para irem ao encontro do Salvador que vem, "bem vigilantes na oração e... celebrando os seus divinos louvores".(8) Queremos observar, ainda, que a Liturgia do Advento, conjugando a expectativa messiânica e a outra expectativa da segunda vinda gloriosa de Cristo, com a admirável memória da Mãe, apresenta um equilíbrio cultual muito acertado, que bem pode ser tomado como norma a fim de impedir quaisquer tendências para separar, como algumas vezes sucedeu em certas formas de piedade popular, o culto da Virgem Maria do seu necessário ponto de referência: Cristo. Além disso, faz com que este período, como têm vindo a observar os cultores da Liturgia, deva ser considerado como um tempo particularmente adequado para o culto da Mãe do Senhor: orientação essa, que nós confirmamos e auspiciamos ver aceita e seguida por toda a parte.

5. O tempo do Natal constitui uma memória continuada da Maternidade divina, virginal e "salvífica", daquela cuja "intemerata virgindade deu a este mundo o Salvador".(9) Assim, na solenidade da Natividade do Senhor, a Igreja, ao adorar o divino Salvador, venera também a sua gloriosa Mãe; na Epifania do Senhor, ao mesmo tempo que celebra a vocação universal para a salvação, contempla a Virgem Maria, verdadeira Sede da Sabedoria e verdadeira Mãe do Rei, que apresenta à adoração dos Magos o Redentor de todas as gentes (cf. Mt 2,11); e na festa da Sagrada Família, Jesus, Maria e José (Domingo dentro da oitava da Natividade do Senhor), considera, venerável, a vida de santidade que levam, na casa de Nazaré, Jesus, Filho de Deus e Filho do homem, Maria, sua Mãe, e José, homem justo (cf. Mt 1,19).

No ordenamento do período natalício, conforme foi recomposto, parece-nos que as atenções de todos se devem voltar para a reatada solenidade de Santa Maria Mãe de Deus. Esta, colocada como está, segundo o que aconselhava uso antigo da Urbe, no dia 1° de janeiro, destina-se a celebrar a parte tida por Maria neste mistério de salvação e, a exaltar a dignidade singular que daí advém para a "santa Mãe..., pela qual recebemos... o Autor da vida";(10) é, além disso, ocasião propícia para renovar a adoração ao recém-nascido "Príncipe da Paz", para ouvir ainda uma vez o grato anúncio angélico (cf. Lc 2,14), para implorar de Deus, tendo como medianeira a "Rainha da Paz", o dom supremo da paz. Por isso, na feliz coincidência da Oitava do Natal do Senhor com a data auspiciosa de 1° de janeiro, instituímos o Dia Mundial da Paz, que vai recebendo crescentes adesões e já matura nos corações de muitos homens frutos de paz.

6. Às duas solenidades já recordadas, a Imaculada Conceição e a Maternidade Divina, devem acrescentar-se ainda as antigas e venerandas celebrações de 25 de março e de 15 de agosto.
Para a solenidade da Encarnação do Verbo, no Calendário romano, com motivada decisão, foi reatado o título antigo "Anunciação do Senhor"; no entanto, a celebração era e continua a ser festa, conjuntamente, de Cristo e da Virgem Maria: do Verbo que se torna "filho de Maria" (Mc 6,3) e da Virgem que se torna Mãe de Deus. Relativamente a Cristo, o Oriente e o Ocidente, nas inexauríveis riquezas das suas Liturgias, celebram tal solenidade em memória do "fiat" "salvífico" do Verbo Encarnado, que ao entrar no mundo disse: "Eis-me, eu venho... para fazer, ó Deus, a tua vontade" (Hb 10,7; Sl 39,8-9); em comemoração do início da Redenção e da indissolúvel e esponsal união da natureza divina com a humana na única Pessoa do Verbo. Relativamente a Maria, por sua vez, é celebrada como festa da nova Eva, virgem obediente e fiel, que, com o seu "fiat" generoso (cf. Lc 1,38), se torna, por obra do Espírito Santo, Mãe de Deus, mas ao mesmo tempo também, Mãe dos viventes, e, ao acolher no seu seio o único Mediador (cf.1Tm 2,5), verdadeira Arca da Aliança e verdadeiro Templo de Deus; ademais, em memória de um momento culminante do diálogo de salvação entre Deus e o homem, e em comemoração do livre consentimento da Santíssima Virgem e do seu concurso no plano da Redenção.

A solenidade de 15 de agosto celebra a gloriosa Assunção de Maria ao céu; festa do seu destino de plenitude e de bem-aventurança, da glorificação da sua alma imaculada e do seu corpo virginal, da sua perfeita configuração com Cristo Ressuscitado. É uma festa, pois, que propõe à Igreja e à humanidade a imagem e o consolante penhor do realizar-se da sua esperança final: que é essa mesma glorificação plena, destino de todos aqueles que Cristo fez irmãos, ao ter como eles "em comum o sangue e a carne" (Hb 2,14; cf. Gl 4,4). A solenidade da Assunção tem um prolongamento festivo na celebração da Realeza da bem-aventurada Virgem Maria, que ocorre oito dias mais tarde, e na qual se contempla aquela que, sentada ao lado do Rei dos Séculos, resplandece como Rainha e intercede como Mãe.(11) Quatro solenidades, portanto, que acentuam com o máximo grau litúrgico as principais verdades dogmáticas que se referem à humilde Serva do Senhor.

7. Além destas solenidades, devem ser consideradas também, antes de mais, aquelas celebrações que comemoram eventos "salvíficos", em que a Virgem Maria esteve intimamente associada ao Filho, como são as seguintes festas: a da Natividade de Maria (8 de setembro), "que constituiu para o mundo inteiro motivo de esperança e aurora da salvação"; (12) a da Visitação (31 de maio), em que a Liturgia recorda a "bem-aventurada Virgem Maria... que leva em seu seio o Filho",(13) e que vai a casa de Isabel para lhe prestar o auxílio da sua caridade e proclamar a misericórdia de Deus Salvador; (14) ou, ainda, a memória de Nossa Senhora das Dores (15 de setembro), ocasião propícia para se reviver um momento decisivo da história da Salvação, e para venerar, juntamente com o Filho "exaltado na cruz, a Mãe que com Ele compartilha o sofrimento".(15)

Igualmente a festa que se celebra a 2 de fevereiro, à qual foi restituída a denominação de "Apresentação do Senhor", deve ser considerada, a fim de que se possa captar plenamente o seu riquíssimo conteúdo; nela se evoca, de fato, a memória, ao mesmo tempo, do Filho e da Mãe; quer dizer, é a celebração de um mistério da Salvação operado por Cristo, em que a Virgem Santíssima esteve a Ele intimamente unida, como Mãe do Servo sofredor de Javé e como executora de uma missão respeitante ao antigo Israel, e, ainda, qual exemplar do novo Povo de Deus, constantemente provado na fé e na esperança, pelo sofrimento e pela perseguição (cf. Lc 2,21-35).

8. Se é verdade que o Calendário romano põe em realce sobretudo as celebrações acima recordadas, ele enumera todavia outros tipos de memórias, ou festas: umas, ligadas a motivos de culto local, mas que alcançaram um âmbito mais vasto e um interesse mais vivo (11 de fevereiro: Nossa Senhora de Lourdes; 5 de agosto: Dedicação da Basílica de Santa Maria Maior em Roma); outras originariamente celebradas por Famílias religiosas particulares, mas que hoje em dia, dada a difusão que obtiveram, podem dizer-se verdadeiramente eclesiais (16 de julho: Nossa Senhora do Monte Carmelo; 7 de outubro: Nossa Senhora do Rosário); e outras, enfim, que, por detrás do que têm de apócrifo, propõem conteúdos de elevado valor exemplar e continuam veneráveis tradições, radicadas sobretudo no Oriente (21 de novembro: Apresentação de Nossa Senhora), ou então, exprimem orientações que surgiram na piedade contemporânea (sábado após o segundo Domingo depois de Pentecostes: Imaculado Coração da bem-aventurada Virgem Maria).

9. Não se deve esquecer, por outro lado, que o Calendário romano geral não regista todas as celebrações de conteúdo mariano: é aos Calendários particulares que compete recolher, com fidelidade as normas litúrgicas mas também com cordial adesão, as festas marianas próprias das diversas Igrejas locais. E falta ainda acenar à possibilidade de uma comemoração litúrgica freqüente da Virgem Santíssima, mediante o recurso à memória de Santa Maria "in Sabbato": memória antiga e discreta, que a flexibilidade do Calendário atual e a multiplicidade de formulários do Missal tornam extremamente fácil e variada.

10. Não é nossa intenção, nesta Exortação Apostólica, considerar todo o conteúdo do novo Missal Romano; no entanto, para aquela tentativa de apreciação que nos propusemos fazer, pelo que se refere aos livros restaurados do Rito romano,(16) desejamos salientar alguns dos seus aspectos e temas. E apraz-nos realçar, antes de mais nada, como as Preces Eucarísticas, em convergência admirável com as Liturgias orientais(17) contêm uma significativa memória da bem-aventurada Virgem Maria. Assim, o vetusto Cânon romano, que comemora a Mãe do Senhor, em termos densos de doutrina e de fervor cultual: "Unidos na mesma comunhão, veneramos primeiramente a memória da gloriosa sempre Virgem Maria, Mãe do Nosso Deus e Senhor, Jesus Cristo"; de igual modo, a recente Prece Eucarística III, que exprime com intensa súplica o desejo dos que oram, de compartilhar com a Mãe a herança de filhos: Que Ele "faça de nós uma oferenda perfeita para alcançarmos a vida eterna, com os vossos santos: a Virgem Maria Mãe de Deus". Uma tal evocação cotidiana, pelo lugar em que foi colocada, no coração do Sacrifício divino, deve ser considerada forma particularmente expressiva do culto que a Igreja tributa à "Bendita do Altíssimo" (cf. Lc 1,28).

11. Ao percorrermos, depois, os textos do Missal reformado, vemos que os grandes temas marianos do eucológio romano, como a conceição imaculada, a virgindade integérrima e fecunda, o templo do Espírito Santo, a cooperação na obra do Filho, a santidade exemplar, a intercessão misericordiosa, a assunção ao céu, a realeza materna, e outros mais, foram aí recolhidos em perfeita continuidade doutrinal com o passado; vemos, ainda, que outros temas, novos num certo sentido, foram aí introduzidos com análoga aderência perfeita aos desenvolvimentos teológicos do nosso tempo. Assim, por exemplo, o tema Maria-Igreja foi inserido nos textos do Missal com variedade de aspectos, do mesmo modo que variadas e multíplices são também as relações que se verificam entre a Mãe de Cristo e a Igreja. Esses textos, na verdade, entrevêem na Conceição sem mácula da Virgem Maria o exórdio da Igreja, também ela, "Esposa sem mancha" de Cristo;(18) na Assunção reconhecem o início já realizado e a imagem daquilo que, para a Igreja inteira, deve realizar-se ainda; (l9) no mistério da Maternidade confessam ser ela Mãe da Cabeça e dos membros: Santa Mãe de Deus, pois, e próvida Mãe da Igreja.(20)

Quando a Liturgia, depois, volve o seu olhar quer para a Igreja primitiva, quer para a contemporânea, aí encontra, amiúde e sem esforço, Maria: nos primórdios, como presença orante, juntamente com os Apóstolos;(21) mais proximamente, como presença operante, juntamente com a qual a Igreja quer viver o mistério de Cristo: "Dai à vossa Igreja, unida a Maria na paixão de Cristo, participar da ressurreição do Senhor";(22) além disso, como voz de louvor, juntamente com a qual quer glorifïcar a Deus: "...fazei-nos dóceis ao Espírito Santo, para cantar com ela o vosso louvor";(23) e dado que a mesma Liturgia é um culto que exige um modo de proceder na vida coerente, nela se implora poderem os féis traduzir o culto à Virgem Maria, num amor bem concreto e sofrido pela Igreja, como admiravelmente propõe, a oração após a comunhão da festa de 15 de setembro: "...que, recordando as dores de Nossa Senhora, completemos em nós, para o bem da Igreja, o que falta à paixão do Cristo".

12. O "Ordo Lectionum Missae" (Lecionário) é um dos livros do Rito romano que muito beneficiou com a reforma feita após o Concílio, tanto pelo número dos textos que aí foram acrescentados, como pelo valor intrínseco dos mesmos: trata-se efetivamente de textos em que se contém a Palavra de Deus, sempre viva e eficaz (cf. Hb 4,12). Esta exuberância de leituras bíblicas permitiu que se expusesse, num ordenado ciclo trienal, toda a história da Salvação, e que se apresentasse de uma forma mais completa o mistério de Cristo. Daí resultou, como conseqüência lógica, que o Lecionário contém um número maior de passagens do Antigo e do Novo Testamento, respeitantes a bem-aventurada Virgem Maria; aumento numérico, este, não avulso, todavia, de uma crítica serena, porque foram coligidas unicamente aquelas leituras que, ou pela evidência do seu conteúdo, ou pelas indicações de uma exegese acurada e bem apoiada pelos ensinamentos do Magistério ou por uma sólida tradição, podem considerar-se, se bem que de modo e em grau diferente, de caráter mariano. Importa observar, além disto, que estas leituras não se encontram apenas na altura das festas da Santíssima Virgem, mas são proclamadas em muitas outras ocasiões; assim sucede nalguns domingos, ao longo do ano litúrgico,(24) e nas celebrações de ritos que interessam profundamente a vida sacramental do cristão e as suas opções, (25) bem como os momentos alegres ou penosos de sua existência.(26)

13. Também o reestruturado livro do "Officium laudis", a Liturgia das Horas, encerra preclaros testemunhos de piedade para com a Mãe do Senhor: nas composições dos hinos, entre as quais não faltam algumas obras-primas da literatura universal, como por exemplo, a sublime oração de Dante Alighieri à Virgem Maria;(27) depois, nas antífonas com que se conclui a recitação cotidiana do ofício, implorações cheias de lirismo, às quais se acrescentou o celebre tropário "Sub tuum praesidium", venerando pela sua antigüidade e admirável pelo seu conteúdo; nas preces colocadas no final de Laudes e Vésperas, em que não é raro encontrar-se o confiante recurso a Mãe de misericórdia; na seleção vastíssima, enfim, de páginas marianas, devidas à pena de Autores que viveram nos primeiros séculos do Cristianismo, na Idade Média e na Idade Moderna.

14. Se no Missal, no Lecionário e na Liturgia das Horas, que são os eixos da oração litúrgica romana, a memória da Virgem Maria se repete com ritmo freqüente, também nos demais livros litúrgicos reformados não faltam as expressões de amor e de suplicante veneração para com a "Theotocos" (= Mãe de Deus). Deste modo, pode ver-se que a Igreja a invoca, Mãe da graça, antes de imergir os candidatos nas águas salutares do Batismo,(28) implora a sua intercessão para aquelas mães que, reconhecidas pelo dom da maternidade, se apresentam com alegria no templo; (29) aponta-a como exemplo aos seus membros que abraçam a seqüela de Cristo na vida religiosa(30) ou recebem a consagração virginal, (31) e para eles invoca o seu auxílio maternal; (32) a ela dirige instante súplica em favor dos filhos que chegaram à hora do passamento;(33) dela solicita a intervenção em prol daqueles que fechados os olhos para a luz temporal, compareceram perante Cristo, Luz eterna, (34) e, enfim, suplica, pela sua intercessão, conforto para aqueles que, mergulhados na dor, choram, com fé, a partida dos próprios entes queridos. (35)

15. Este breve exame dos livros litúrgicos restaurados leva-nos a uma confortante comprovação: a reforma pós-conciliar, como já figurava entre os votos do Movimento Litúrgico, considerou a Virgem Maria com uma perspectiva adequada no mistério de Cristo; e, em sintonia com a tradição, reconheceu-lhe o lugar singular que lhe compete no culto cristão, qual Santa Mãe de Deus e enquanto alma cooperadora do Redentor. Nem podia ser de outra maneira. Ao percorrermos, ainda uma vez, a história do culto cristão, podemos notar que, tanto no Oriente como no Ocidente, as expressões mais altas e mais límpidas da piedade para com a bem-aventurada Virgem Maria floresceram no âmbito da Liturgia, ou então nela foram incorporadas.
Desejamos acentuar bem isto: o culto que a Igreja universal tributa hoje à Santíssima Virgem é derivação, prolongamento e acréscimo incessante daquele mesmo culto que a Igreja de todos os tempos lhe rendeu, com escrupuloso estudo da verdade e com uma sempre vigilante nobreza de formas. Da tradição perene, viva, em virtude da presença ininterrupta do Espírito e do contínuo dar ouvidos à Palavra, a Igreja do nosso tempo extrai motivações, argumentos e estímulo para o culto que presta à bem-aventurada Virgem Maria. E a própria Liturgia, que recebe do Magistério aprovação e alento, é expressão altíssima e documento probatório dessa mesma tradição viva.


B. A Virgem Maria, modelo da Igreja no exercício do culto

16. Queremos, agora, seguindo algumas indicações da doutrina conciliar acerca de Maria e da Igreja, aprofundar um aspecto particular das relações que se verificam entre Maria e a Liturgia, ou seja: Maria como exemplar da atitude espiritual com que a Igreja celebra e vive os divinos mistérios. A exemplaridade da bem-aventurada Virgem Maria, neste campo, é conseqüência do fato de ela ser reconhecida como modelo excelentíssimo da Igreja, na ordem da fé, da caridade e da perfeita união com Cristo (LG 63), isto é, daquelas disposições interiores com que a mesma Igreja, Esposa amadíssima, intimamente associada ao seu Senhor, O invoca e, por meio d'Ele presta o culto ao eterno Pai (SC 7).

17. Maria é a Virgem que sabe ouvir, que acolhe a palavra de Deus com fé; fé, que foi para ela prelúdio e caminho para a maternidade divina, pois, como intuiu Santo Agostinho, "a bem-aventurada Maria, acreditando, deu à luz Aquele (Jesus) que, acreditando, concebera" (Sermo 215, 4; PL 38,1074); na verdade, recebida do Anjo a resposta à sua dúvida (cf. Lc 1,34-37), "Ela, cheia de fé e concebendo Cristo na sua mente, antes de o conceber no seu seio, disse: "Eis a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo a tua palavra" (Lc 1,38 - ibid.); fé, ainda, que foi para Ela motivo de beatitude e de segurança no cumprimento da promessa: "Feliz aquela que creu, pois o que lhe foi dito da parte do Senhor será cumprido" (Lc 1,45); fé, enfim, com a qual ela, protagonista e testemunha singular da Encarnação, reconsiderava os acontecimentos da infância de Cristo, confrontando-os entre si, no íntimo do seu coração (cf. Lc 2,19.51). É isto que também a Igreja faz; na sagrada Liturgia, sobretudo, ela escuta com fé, acolhe, proclama e venera a Palavra de Deus, distribui-a aos fiéis como pão de vida (DV 21), à luz da mesma, perscruta os sinais dos tempos, interpreta e vive os acontecimentos da história.

18. Maria é, além disso, a Virgem dada à oração. Assim nos aparece ela, de fato, na visita à mãe do Precursor, quando o seu espírito se efunde em expressões de glorificação a Deus, de humildade, de fé e de esperança: tal é o "Magnificat" (cf. Lc 1,46-55), a oração por excelência de Maria, o cântico dos tempos messiânicos no qual confluem a exultação do antigo e do novo Israel, pois, conforme parece querer sugerir Santo Ireneu, no cântico de Maria convergiu o júbilo de Abraão, que pressentia o Messias (cf: Jo 8,56) (36) e ressoou, profeticamente antecipada, a voz da Igreja: "exultante, Maria clamava, em lugar da Igreja, profetizando: a minha alma glorifica o Senhor...".(37) Este cântico da Virgem Santíssima, na verdade, prolongando-se, tornou-se oração da Igreja inteira, em todos os tempos.

Virgem em oração aparece Maria, também, em Caná, onde, ao manifestar ao Filho, com imploração delicada, uma necessidade temporal, obteve também um efeito de graça: que Jesus, ao realizar o primeiro dos seus "sinais", confirmasse os discípulos na fé n'Ele (cf. Jo 2,1 12). Por fim, ainda a última passagem biográfica relativa a Maria no-la descreve orante: os Apóstolos "perseveravam unânimes na oração, com algumas mulheres, entre as quais Maria, a mãe de Jesus, e com os irmãos dele" (At 1,14). Presença orante de Maria na Igreja nascente, pois, e na Igreja de todos os tempos; porque ela, assumida ao céu, não depôs a sua missão de intercessão e de salvação (LG 62).

Virgem dada à oração e também a Igreja, a qual todos os dias apresenta ao Pai as necessidade dos seus filhos, e "louva o Senhor sem cessar e intercede pela salvação de todo o mundo" (SC 83).

19. Maria é, depois, a Virgem Mãe, isto é, aquela que "pela sua fé e obediência, gerou na terra o próprio Filho de Deus Pai, sem ter conhecido varão, por obra e graça do Espírito Santo" (LG 63). Maternidade prodigiosa, constituída por Deus protótipo e modelo da fecundidade da Virgem-Igreja  a, a qual, por sua vez, "se torna também mãe, dado que, com a pregação e com o batismo gera para vida nova e imortal "os alhos concebidos por ação do Espírito Santo e nascidos de Deus" (LG 64).

Com justeza, portanto, os antigos Padres ensinavam que a Igreja prolonga no sacramento do Batismo a maternidade virginal de Maria. De entre os testemunhos destes Padres, apraz-nos recordar o do nosso predecessor, São Leão Magno, que, numa homilia natalícia, afirmava: "A origem que (Cristo) assumiu no seio da Virgem (Maria), coloca-a Ele na fonte do batismo: conferiu à água aquilo que deu à Mãe; com efeito, a virtude do Altíssimo e a sombra do Espírito Santo (cf. Lc 1,35), que fizeram com que Maria desse à luz o Salvador, são o mesmo que faz com que a ablução regenere aquele que crê".(38) E se quisermos referir ainda fontes litúrgicas, poderemos citar a bela illatio da Liturgia hispânica: "Aquela (Maria) trouxe no seu seio a Vida; esta (Igreja) a traz no lavacro batismal. Nos membros daquela Cristo foi plasmado; nas águas desta Cristo foi revestido".(39)

20. Maria é, enfim, a Virgem oferente. No episódio da apresentação de Jesus no Templo (cf. Lc 2,22-35), a Igreja, guiada pelo Espírito Santo, descobriu, para além do cumprimento das leis respeitantes a oblação do primogênito (cf. Ex 13,11-16) e à purificação da mãe (cf. Lv 12,68), um mistério "salvífico" relativo à história da Salvação, precisamente: e em tal mistério realçou a continuidade da oferta fundamental que o Verbo encarnado fez ao Pai, ao entrar no mundo (cf. Hb 10,5-7); viu nele proclamada a universalidade da Salvação, porque Simeão, ao saudar no menino a luz para iluminar as nações e a glória de Israel (cf. Lc 2,32), reconhecia n'Ele o Messias, o Salvador de todos; entendeu aí uma referência profética à Paixão de Cristo: é que as palavras de Simeão, as quais uniam num único vaticínio o Filho, "sinal de contradição" (Lc 2,34), e a Mãe, a quem a espada haveria de trespassar a alma (cf. Lc 2,35), verificaram-se no Calvário. Mistério de salvação, portanto, que nos seus vários aspectos, orienta o episódio da apresentação no Templo para o acontecimento "salvífico" da Cruz.

Mas a mesma Igreja, sobretudo a partir dos séculos da Idade Média, entreviu no coração da Virgem Maria, que leva o Filho a Jerusalém "para o oferecer ao Senhor" (cf. Lc 2,22), uma vontade oblativa, que transcendia o sentido ordinário do rito. Dessa intuição temos um testemunho na afetuosa apóstrofe de São Bernardo: "Oferece, Virgem santa, o teu Filho e apresenta ao Senhor o fruto bendito do teu ventre. Sim! Oferece a hóstia santa e agradável a Deus, para reconciliação de todos nós!"(40)

Esta união da Mãe com o Filho na obra da Redenção (LG 57) alcança o ponto culminante no Calvário, onde Cristo "se ofereceu a si mesmo a Deus como vítima sem mancha" (Hb 9,14), e onde Maria esteve de pé, junto à Cruz (cf. Jo 19,25), "sofrendo profundamente com o seu Unigênito e associando-se com ânimo maternal ao seu sacrifício, consentindo amorosamente na imolação da vítima que ela havia gerado" (LG 58), e oferecendo-a também ela ao eterno Pai.(41) Para perpetuar ao longo dos séculos o Sacrifício da Cruz, o divino Salvador instituiu o Sacrifício eucarístico, memorial da sua Morte e Ressurreição, e confiou-o à Igreja, sua Esposa (SC 47), a qual sobretudo ao domingo, convoca os fiéis para celebrar a Páscoa do Senhor, até que Ele torne (SC 102 e 106): o que a mesma Igreja faz em comunhão com os Santos do céu e, em primeiro lugar, com a bem-aventurada Virgem Maria,(42) de quem imita a caridade ardente e a fé inabalável.

21. Exemplar de toda a Igreja, no exercício do culto divino, Maria é também, evidentemente, mestra de vida espiritual para cada um dos cristãos. Assim, bem cedo os fiéis começaram a olhar para Maria, a fim de, como ela, fazerem da própria vida um culto a Deus, e do seu culto um compromisso vital. Já no século IV Santo Ambrósio, ao falar aos féis, lhes auspiciava que em cada um deles houvesse a alma de Maria, para glorificarem a Deus: "Que em cada um de vós haja a alma de Maria para bendizer o Senhor; e em cada um de vós esteja o seu espírito, para exultar em Deus!". (43)

Mas Maria é modelo, sobretudo, daquele culto que consiste em fazer da própria vida uma oferenda a Deus: doutrina antiga e perene, esta, que cada um de nós pode ouvir repetir, se prestar atenção aos ensinamentos da Igreja; mas que poderá entrever também, se der ouvidos à palavra da mesma Virgem Santíssima, quando ela, antecipando em si a estupenda petição da Oração Dominical, "seja feita a vossa vontade" (Mt 6,10), respondeu ao mensageiro de Deus: "Eis a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo a tua palavra" (Lc 1,38). E o "sim" de Maria é para todos os cristãos lição e exemplo, para fazerem da obediência à vontade do Pai o caminho e o meio da própria santificação.

22. É importante, ainda, observar bem como a Igreja procura traduzir as multíplices relações que a unem a Maria, em outras tantas atitudes culturais, diversas e eficazes: em veneração profunda, quando reflete na dignidade singular da Virgem Santíssima, que, por obra do Espírito Santo, se tornou Mãe do Verbo Encarnado; em amor ardente, quando considera a maternidade espiritual de Maria para com todos os membros do Corpo Místico; em invocação confiante, quando experimenta a necessidade de intercessão da sua advogada e auxiliadora (LG 62); em serviço amoroso, quando descobre na humilde Serva do Senhor a Rainha da misericórdia e a mãe da graça; em imitação operosa, quando contempla a santidade e as virtudes da "cheia de graça" (Lc 1,28); em admiração comovida, quando vê nela, "como em imagem puríssima, o que ela, toda ela, deseja e espera com alegria ser" (SC 103); em estudo atento, quando vislumbra na cooperadora do Redentor, já a participar plenamente dos frutos do Mistério Pascal, a realização profética do seu futuro pela qual anela, até ao dia em que purificada de qualquer mancha ou ruga (cf. Ef 2,27), se tornará como uma esposa adornada para o seu esposo, Jesus Cristo (cf. Ap 21,2).

23. Após havermos considerado, assim, Irmãos caríssimos, a veneração que a tradição litúrgica da Igreja universal e o Rito romano renovado exprimem para com a Santa Mãe de Deus, se nos lembrarmos, depois, que a Liturgia, pelo seu proeminente valor cultual, constitui uma norma de ouro para a piedade cristã e se observarmos, ainda, que a Igreja, quando celebra os sagrados mistérios, assume uma atitude de fé e de amor semelhante à da Virgem Santíssima poderemos compreender quão justa é a exortação do Concílio Vaticano II a todos os filhos da Igreja, "para que promovam generosamente o culto, especialmente litúrgico, à bem-aventurada Virgem Maria" (LG 67). Exortação esta, que desejaríamos ver, por toda a parte, acatada sem reservas e posta em prática com zelo.


Fiat Voluntas Tua
Santo Rosário
Voltar para o conteúdo